segunda-feira, 24 de junho de 2013

O colecionador das coisas

“Não sei como começou ao certo, me lembro vagamente de ter achado um selo em uma calçada perto de casa e ter colocado em meu bolso. Desde então, nunca mais parei.” Os cabelos grisalhos e rareando em alguns pequenos espaços no cocuruto denunciam os 46 anos de Giba, o “colecionador de todas as coisas do mundo” ou, sob a vista de outros olhos, o “guardador de porcarias”.

Gilberto de Almeida Ieno, casado com “Tita”, simplesmente, e pai de dois meninos de nove e sete anos é uma daquelas pessoas que são conhecidas por seus gostos, manias ou hobbies. Professor de biologia há quase 22 anos, Gilberto é mais colecionador que amante dos poríferos. Em seu carro, um Ford kA preto de 2011, é possível encontrar no porta-malas discos de vinil, carrinhos de brinquedo, CDs, umas pasta com cartões telefônicos, uma caixinha de moedas antigas e até algumas fitas VHS largadas displicentemente. “Não costumo deixar tudo sempre no meu carro, mas hoje você deu sorte porque na semana passada eu tive uns encontros. Tem mais em casa: isso não é nada.” Com encontros, Giba se refere a feiras de trocas e reuniões com outros colecionadores em casas de colegas.

Morador e amante do bairro de Perdizes, em São Paulo, Betinho, nas palavras de Dona Nena, sempre gostou de guardar cacarecos da rua. Enriqueta Campos de Almeida Cruz vive a umas quadras de distância do filho. “Quando ele se casou, eu disse para ir bem longe de mim [por]que nora não gosta de morar perto de sogra, não é verdade?! Mas a Tita não quis, não sei o motivo, e ele também não. Então, está bem, não é?! O que eu posso fazer?” Dona Nena, hoje, no entanto, sustenta que encontrou a razão. “Minha casa, que eu limpo todo santo dia, passo pano na sala e na cozinha, está cheia de troçada dele.” Giba afirma que a mãe é exagerada e passa as mãos pela gola da camisa polo, em um trejeito característico.

Gilberto é professor em duas escolas, uma no bairro onde mora, o colégio Alfredo Castro, e outra no bairro do Belém, na zona leste da cidade. Costuma sair de casa cedo e só voltar à noite quando os filhos já se encontram na preparação rotineira para dormir. Além das correções de trabalhos e atividades de seus alunos, o professor dá lugar ao marido quando de um programa a dois nos finais de semana. Giba, no entanto, também afasta a figura do mestre de classes e do esposo romântico para dar lugar ao Giba-menino. “Ali pela rua Direita [na região central da cidade], naquelas paralelas, tem os melhores lugares para se encontrar coisas antigas e interessantes. Para mim, né?!” Gilberto tem o hábito de caminhar pelo centro sozinho, com olhos apuradíssimos.

O que o tempo apaga, leva embora, a memória faz questão de manter, mesmo que em alguns pedaços desencontrados. Talvez seja um mecanismo que se revele essencial no não-esquecimento de lembranças determinantes. O menino Gilberto não foi criado pelos pais. Dona Nena teve três crianças, em suas palavras, “muito, muito cedinho para uma menina”. Separou-se do marido quando o terceiro ainda estava por vir. “Eu não tinha com quem deixar o Betinho, mais velho, aí ele ia para a [casa da] minha mãe, que cuidava dele todos os dias. E o outro [Carlos, irmão mais novo de Gilberto] ficava num berçário perto do trabalho também. Era difícil, mas foi bom, não é?!”, rememora olhando para Gilberto que, por sua vez, fita os mosaicos que os tacos de madeira formam no chão.

Passar boa parte da infância em companhia da avó materna foi crucial para a formação do Giba de hoje, o que é natural quando se pensa que tudo na vida tem um potencial para mudar caminhos – se é que eles já estão traçados. “Não só pelo carinho ou pelo cuidado e preocupação com o futuro de meus filhos. Minha avó, pelas dificuldades que teve de enfrentar, sempre priorizou o pensamento lá na frente, no que ainda estava para chegar.” Contraditoriamente, ou justamente por isso, a avó de Gilberto foi a peça inicial para a arte e paixão por colecionar. “Era um jeito de se apegar ao passado. Ela veio de Portugal, gostava de guardar selos e cédulas. Mas a verdade é que qualquer pedaço de papel que vinha de lá ela mantinha num baú”, conta o menino de cabelos grisalhos.

Então, com o incentivo e apoio da avó materna, Gilberto se iniciou no mundo das coleções? Muito pelo contrário. “Peguei uma caixa de sapato da minha mãe e levei até a casa de minha avó numa manhã. Abri a portinha do armário em que ficava a televisão e peguei uma moeda que ela guardava. Coloquei na minha nova caixa. Levei uma bronca quando ela percebeu. Todos os palavrões ela disse! E ainda jogou o meu baú de papelão no lixo”, lamenta em meio às risadas. Apenas no dia em que encontrou o selo na calçada é que Gilberto começou a guardar coisas. As suas próprias coisas. “Fiquei feliz porque era um selinho, e ela [a avó] também gostava de selos. Mas era daqui do Brasil mesmo. Ou seja, não era raro e nem exótico. Mesmo assim foi esse.”

O garoto Giba, que hoje é também professor, pai, marido dedicado e filho constante e presente, acredita que se mantém sempre com a avó ao seu lado através de suas coleções. “Me faz muita falta. Ela era a Dona Julita, que andava com seu neto pra cima e pra baixo. Aquele menino que vivia correndo e levando bronca por atravessar as ruas do bairro sem esperar pela vó. Ela era a minha mãe, claro. Mas tínhamos algo fora do comum entre nós. O saudosismo dela e sua ligação com o passado me cativavam. Era uma coisa mística, porque ela nunca foi muito comunicativa, não me contava histórias. Eu que tentava adivinhar a sua vida antes do meu surgimento no mundo”, confessa um Giba lacrimejando. Julita, que era Maria Julieta de Almeida Soares, faleceu e deixou para seu neto a casa no bairro de Perdizes com tudo o que havia dentro. Atualmente alugada, Gilberto conta que ele e sua mãe foram se desfazendo de tudo aos poucos. E o baú de madeira? “Está guardado em meu quarto. E não faz parte de minha coleção.”

Com o dia a dia atarefado, os tais “encontros” com os colegas quarentões são cada vez menos frequentes – “duas vezes por mês, talvez um pouco mais”. Giba, então, se contenta com as feiras de trocas e com as mil possibilidades que a internet lhe propicia. Aliás, do que consiste a coleção do professor de biologia, afinal? “A caixa de cacarecos deu lugar a uma infinidade de CDs, selos e cartões telefônicos. Tentei ir atrás de livros raros em sebos também. Mas levei uma bronca danada da minha mulher. Ela dizia que eu estava virando aquelas pessoas que guardam tudo da rua. Mesmo discurso da Dona Nena. Já são duas matracando no meu ouvido. Aí não rola, né?!”. Gilberto, entretanto, não menciona os carrinhos de brinquedo e os LPs – talvez partes de uma sub-coleção. Pergunto a ele porquê não guardar apenas um tipo de coisa, os selos significativos, por exemplo. “Você não está entendendo.”, com um olhar melífluo, prossegue, “eu não sou apegado aos cartões. Eu sou apaixonado por colecionar os cartões. Sou apaixonado por colecionar. Compreende?”.

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