sexta-feira, 20 de junho de 2014

Gostava do inverno

Gostava do inverno. O aquecedor formava uma bola de fogo, um sol em seu corpo. Observava-a por horas no banho, gerando, cautelosamente, a vida. O contato da pele fria com a água quente emanava fumaças. Aguardava, ansiosamente, pelo término. Passava a manga do blusão no espelho, para desembaçá-lo. 
Sempre achara a cena engraçada. Depois de tantos momentos de intimidade, anos de convívio com ares de séculos de vida compartilhada, havia o mesmo diálogo:

- Que cê tá fazendo?
- Limpando o espelho.
- Tá bom. Agora pode ir.
- Não posso ficar?
- Não. Mas me passa a toalha.

Como na primeira vez, o embaraço persistia ao ter de deixar o espaço delimitado pelo box do chuveiro. Era justamente um dos motivos pelos quais a amava: a vergonha que demonstrava ao sair do banho - se não houvesse toalha para se secar, permanecia por horas na água. Era menina.
Gostava de escovar os dentes enquanto caminhava pela casa - segundo peculiar costume para amar, e brigar:

-  Dá para você ficar quieta em um só lugar? Ou não consegue perceber que a pia do banheiro foi feita justamente para você não ficar andando por aí e sujando a casa de branco? - reprovava, bravio demais para fazer notar que o problema em questão não era esse.
- A pia foi feita só para isso então?


00h08

E está difícil agora, Elise. Comecei a merda deste texto quando você resolveu sair por aí, dizendo que precisava respirar alguma coisa que não fosse este ar que criamos - e que agora renovo sozinho. Você foi até a praia e voltou para pedir desculpas. Dei-lhe uma bronca por ter pego a estrada à noite, apenas para que pudesse regressar e pedir desculpas. Comosefossemnecessáriasdesculpaseujáestavatranstornadoemimaginaroapartamento    sem você.

Comecei escrevendo isto aqui pois eu precisava listar - ah! grandes conselhos que recebemos daqueles que nada sabem - as belas razões que evidenciavam a sua importância para mim. Deveria responder a perguntas básicas como "por quê eu a amo". Estava tão furioso que desisti da lista nos primeiros dois segundos e optei pelo término, afinal era "a melhor solução". Em dois segundos eu não tinha conseguido pensar em nada?

E eu me dei conta de que não preciso pensar muito para descobrir o que me atrai em você: gosto quando você liga o aquecedor e prolonga o banho quente por horas; eu gosto quando você resolve caminhar pela casa - descalça - escovando os dentes. Gosto quando, aos domingos, você começa a cantar e gritar ao som de Wagner e detesto ao ponto de gostar de suas saídas intempestivas em meio aos seus dramas monumentais. Gosto porque sei que você sempre volta.

No entanto, desta vez, o seu banho foi curto. Você, Elise, não reclamou ao me ver no banheiro, não pediu a toalha e saiu nua pelo quarto. Vestiu qualquer roupa, escovou os dentes olhando - ou não - para o espelho ainda embaçado e, após pegar uma maçã na geladeira, saiu de casa.

Por isso eu tenho medo de que você não volte. Detesto ao ponto de não gostar de suas saídas intempestivas. Na verdade, esta é a única razão pela qual eu não a amo.

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